terça-feira, 30 de novembro de 2010

CLAMOR DE UMA CRIANÇA CEGA - Ensina-me a ser independente!

Costumo utilizar esse texto para trabalhar com pais de crianças cegas. É um texto maravilhoso e expressa as principais necessidades de aprendizagem da criança que não pode ver. o texto original é em inglês, contudo foi traduzido para o português de Portugal o que dificulta o trabalho com os pais. Adaptei-o à realidade brasileira e ao português falado aqui.


Sherry Gaynor

Texto traduzido para o português de Portugal por Maria Josefina V. C. Ramos, Centro de Produção de Material, CRSS, Lisboa, 1995. Texto disponível em http://deficienciavisual.com.sapo.pt/txt-ensiname.htm

Adaptação própria para o português do Brasil por Mariza Helena Machado, 2007.


Ensina-me a ser independente! Ensina-me a fazer as coisas por mim - a pensar e tomar as minhas próprias decisões. Ajuda-me a decidir por mim! Ajuda-me a controlar a minha vida, porque mais tarde ou mais cedo... vou ter que ser EU!

Ensina-me a ouvir! Ensina-me quais os sons que existem em casa: a água a correr, a chaleira que ferve, os ramos das árvores que batem nas janelas, o ronronar do gatinho, uma carta de baralho a cair, os sons estranhos de um aerosol, o barulho da geladeira. Quando os sons se misturam todos, ajuda-me a distingui-los!

Ensina-me a ouvir cuidadosamente! Avalie se eu consigo dizer se os sons estão perto ou longe. Ajude-me a saber quais sons são perigosos e quais não são. O que é que está a tilintar? De onde vem aquele barulho? A porta está fechada ou aberta? Se eu ouvir bem, ajuda-me a me mover facilmente. Preciso de ouvidos muito grandes!!!

Ensina-me as relações espaciais! Isto é, as relações do meu corpo com as coisas à minha volta. A que distância de mim está o abajur? Onde está o abajur? Posso pegar no copo sem o deixar cair? Dá-me orientações precisas para que eu possa deslocar-me para as coisas que estão longe. Onde estou? Onde estás?

Posso andar em casa sozinho se as passagens para os cômodos estiverem desimpedidas e se não deixarem coisas espalhadas no chão! Quando engatinhava e encontrava coisas à minha volta... era muito bom... mas agora levo um susto tremendo se tropeço nos sapatos do papai!
Tenho que andar pelos meus pés. Preciso saber quando tenho que virar à esquerda ou à direita. Preciso tatear pelas paredes para poder perceber o tamanho e o nome das coisas. Provavelmente levarei mais tempo do que se me levares com você, mas tenho que começar a praticar já para poder treinar durante o tempo em que está ocupada.

Não digas "aqui" ou "ali". É muito difícil saber onde o "aqui" e o "ali" estão, pois não posso ver! Use palavras que digam realmente onde estão as coisas e para onde vou: "Coloque o livro na mesa da sala de jantar!"; "Vem para o quarto e ajuda-me a arrumar os teus brinquedos!"
Lembras-te? Preciso recordar muitas coisas: onde é o meu quarto, onde deixei as calças, a que distância ficaram, o que fiz ontem. Como não posso ver tenho de aprender a recordar melhor do que você. Então, pergunta-me sempre tudo!

Converse muito comigo. Preciso ouvir os nomes das coisas que tenho à minha volta: armários, mesas, portas. Não tenha medo de usar muitas palavras para descrever as coisas. Preciso ouvi-las para poder perceber como se juntam e quando se usam. Fala comigo quando estou ajoelhado, quando estou a saltar, quando me comporto mal. Dê-me instruções precisas: " Vá sempre em frente!"; " Agora são 5 degraus" ; " Vire à direita!"

Coloca-me ao teu lado enquanto faz os trabalhos domésticos. Fala comigo e mostre-me o que está fazendo: quando estende a roupa, limpa o pó, a geladeira ou lava as janelas. Deixe-me tocar e participar daquilo que está a fazer, para eu começar também a ser auto-suficiente. Deixe-me sempre tentar fazer as coisas!

Eu posso ajudar!  Dê-me trabalhos domésticos para fazer: posso ser eu a levar a minha roupa para o cesto da roupa suja, posso pôr a mesa, tirar os pratos e lavá-los. Preciso da tua ajuda para perceber que os pratos não são todos iguais. Diz-me porquê! Explica-me!
Diga-me o que está cozinhando e deixa-me ajudar-te. Posso ser eu a colocar os ingredientes na tigela depois que você os separou para mim. Posso mexer com a colher se me ajudares a praticar. Que utensílios se usam? Para que servem? Vamos cozinhar!
Gostos, cheiros, texturas. Não se esqueças de me dizer o que estou comendo. Diga-me também o que estou a saborear: os picles são doces ou azedos? A geléia é macia e pode ser de laranja, morango ou limão. A carne pode ser de vaca, de porco ou de galinha. As coisas que se comem podem ser duras, granuladas, doces, etc.
Deixe-me comer com os dedos! Provarei mais alimentos se os comer dessa maneira. Cachorros quentes, frango, churrasco, batatas fritas... mesmo alhos ou cebolas! É tudo tão diferente!

Deixa-me brincar com "porcarias". Ajude-me a meter as mãos na massa, a fazer hambúrgueres, a fazer bolos... A minha primeira reação pode ser de resistir, mas encoraja-me! Não desistas! Poderei vir a gostar!

Preciso fazer comparações. Não só comparações de bolas, brinquedos e cubos, mas também de coisas do dia-a-dia. Ensine-me que os sapatos do papai são maiores que os meus; que você é maior que eu. Preciso tocar na minha cadeira para sentir que é menor que a sua. As panelas também têm tamanhos diferentes: a pequena cabe dentro da grande, mas não se faz o contrário!

Brinca comigo. Dá-me clipes, botões, tampas. Misture-os e depois me peça os botões. Misture as roupas do papai com as minhas e depois me pede as do papai!

Leia muito para mim. Isso me dá uma sensação de proximidade do teu calor, a tua atenção é só para mim! Adoro ouvir as tuas palavras e aprenderei a dizê-las mais tarde. Ler alto ensina-me a gostar de livros e de ler. Mostra-me alguns livros em braille para eu poder sentir aquilo que tenho que aprender. Descreve-me as imagens. Pergunta-me coisas e responde-me a tudo! Ler é tão interessante!
Tire algum do teu tempo para leres para mim. Gosto de ouvir. Quanto mais ouvir, mais aprenderei também. Se disseres palavras que ainda não entendo, explica-me o seu significado.  Anedotas, revistas, poemas, romances.  Algumas histórias são ficção, outras são verdadeiras... ensina-me quais são o quê! Ler, ouvir, aprender.

Brinca comigo de "faz de conta". Finge que você é o bebê e eu o papai ou a mamãe. Use os alimentos da cozinha e finge que estamos numa loja e que sou eu quem vai às compras. Faça me imaginar ser um macaco e ensina-me a saltar e a pular, ou a nadar como um jacaré!
Preciso e posso brincar sozinho. Preciso só que vá buscar os meus brinquedos. Posso pôr os meus cds. Posso colar papéis, porque já aprendi a mexer na cola. Ajude-me a gostar de fazer coisas sozinho!

Gosto de recortar. Posso cortar muitos papéis e colá-los para formar um número ou uma letra. Posso sentir a madeira, o plástico, o papel - tantas texturas e formas!

Quando eu era pequenino tinha que me vestir. Agora que sou maior, preciso de saber vestir-me sozinho. Despir é mais fácil do que vestir!

Que horas são? Preciso saber as horas. E também se é manhã, tarde ou noite. Dê-me pistas sobre o que se faz nessas horas! Almoço antes da tarde, ir à escola de manhã, para a cama à noite. Ensina-me a acertar o relógio! Ontem! Que é  "ontem"? - "Ontem foi quando fomos à loja de sapatos, lembra-te?"

O que è a temperatura? 40º? Está calor lá fora! 2º? Brrrr! Que frio! Por vezes diga-me o que é quente, mas também diga-me que o forno está mais quente e me queima! Diga-me todos os dias a temperatura lá fora. Quente, frio.

Use um horário comigo. Isso me ajuda a sentir seguro se souber o que vou fazer a seguir. Não sejas rígida, mas é bom ter um horário para comer... para ir para a cama... Assim, já sei que há um tempo para certas coisas!
Ajuda-me a usar o telefone. Ensina-me a responder corretamente, quando toca. Ensina-me a desligá-lo. Se houver uma emergência, ensina-me o meu nome, o endereço e o número de telefone.

O que são bebês? Quando houver um bebê por perto, deixa-me pegá-lo também. Posso ajudar a dar-lhe a chupeta, posso brincar com ele, posso empurrar o carrinho. Faça-me sentir o que é uma família!

Quero ser forte.  Ajude-me a desenvolver a minha força. Dê-me coisas para puxar, empurrar, carregar. Atire-me bolas. Ajude-me a subir em árvores. Deixe-me usar todos os meus músculos!

Procure lugares e coisas para explorar. Caixas do correio, hidrantes, elevadores, escadas rolantes. Ensine-me a diferença entre subir e descer de um elevador. O mundo é uma aventura!

Quando estou com você no carro, fale comigo. Diga-me quais são os sons que ouço, se as estradas são de terra ou asfaltadas. Diga-me quando viramos à direita ou à esquerda, ou se vamos passar uma ponte ou um túnel. Se a janela está aberta, diga-me quais os cheiros que se sente: fumo, óleo, gasolina - todos eles ajudam a identificar onde estamos!

Leve-me às compras com você. Eu sei que consegue fazer as compras mais rapidamente sem mim, mas preciso conhecer as lojas e todos os tipos de compras. Diga-me os nomes e ajude-me a tirar as coisas das prateleiras. Se estão altas, levante-me para eu perceber onde estão. Só consigo aprender, se tocar nas coisas.
Não me coloque no carrinho do supermercado. Leve-me junto de ti, deixe-me cheirar e deslocar-me em direção à carne, aos congelados, ao pão. Fale-me das coisas em que estou a mexer, de como são diferentes umas das outras. Vamos às compras todas as semanas e não só de vez em quando!
Não compres sapatos nem roupa sem me levares. Leve-me contigo e deixe-me experimentar! Se os sapatos são muito grandes ou ficam apertados... não os quero! É tão importante a maneira como me sinto! São pretos? Castanhos? Fecham com velcro ou com cordões? O que é uma camisola? Uma cueca? Um pijama? Mostre-me as diferenças!

Leve-me com você ao médico ou ao dentista. As suas salas cheiram diferentemente de tudo o resto. As pessoas ali falam calmamente. Geralmente, há máquinas que fazem barulhos estranhos. Fale sempre o que vai acontecer e peça à enfermeira que me mostre os instrumentos. Habitue-me ao som do meu coração, ao levantar e ao baixar da cadeira do dentista, ao deitar na maca. Assim vou perdendo o medo e da próxima vez já estou habituado!

Leve-me à escola. Fale com os professores para me incluírem numa classe e poder brincar com as outras crianças.
Leve-me para a praia e deixe-me ir para a água. Cuide de mim, mas deixe que eu tente. Ajude-me a construir castelos na areia, a encher os baldinhos com areia, a apanhar conchas, a subir nas rochas, a atirar pedrinhas na água e a ouvir o "splash"! Deixe-me correr pela praia livremente!

Ensina-me a sentir seguro com os outros. Deixe-me ficar por uma noite na casa de um amigo ou parente. Faça-me sentir que vai voltar e que pode sair sem nada me acontecer. Ensina-me a depender de ti, dos outros e principalmente de MIM!

Deixa-me brincar com as outras crianças. Quero fazer o que os outros fazem! Quero brincar no pátio, correr, comprar doces! Também quero pertencer a uma "turma"!

Também faço anos. Faça me entender que meu aniversário está próximo. Deixe-me fazer festas e planejá-las. Ajude-me a convidar as outras crianças além dos meus primos e tios. Posso apagar as velas e adoro presentes.

Também tenho sentimentos. Fale-me dos sentimentos. Por vezes, preciso de ajuda para entendê-los. Se todos são amorosos comigo, tenho dificuldade em saber o que é: "zangado", "invejoso", "magoado", "contente" ou "triste"...

Não ignores a minha cegueira. Podes falar sobre a cegueira na minha frente. Posso entender a diferença. Se eu fizer algumas perguntas, explica-me o melhor que puderes.

Não desculpes o mau comportamento. Tal como qualquer criança, posso habituar-me a fazer só o que quero! Posso tornar-me facilmente um pequeno ditador! Não mostre favoritismo em relação a mim; tenho que fazer parte da família. Não desculpe sempre as minhas travessuras. Hoje é só mais um dia do resto da minha vida...!

Ajude-me a viver cada dia como um rei. Não te preocupes com os problemas que possam surgir! Resolve um de cada vez! Encoraja-me a experimentar coisas novas. Faça me sentir um membro da família. Orgulha-te de mim e do que faço. Ama-me!
Acima de tudo, ama-me! Haverá muitas coisas que esquecerás de fazer. E haverá outras que te dirão para fazer... mas o mais importante é amarem-me!

«Get a Wiggle on» Escrito por: Sherry Gaynor
Editado por: Lou Afonso - Michigan State University

Um comentário:

  1. Dr. Jore Matsumoto, Pediatra - SP30 de novembro de 2010 às 23:00

    Muito bom seu Blog, tenho acompanhado desde o começo e tenho utilizado também muitos de seus textos na disciplina que leciono. Poderia passar-me seu e-mail para contato?
    Abraços

    ResponderExcluir

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