sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A DIMINUIÇÃO DA IDADE PENAL E A REDUÇÃO DA VIOLÊNCIA: A Gestão do Problema.

Os meios de comunicação vêm trabalhando exaustivamente a proposta de redução da idade de responsabilidade penal. Esse tipo de campanha tem conseguido imprimir na população uma idéia que a impede de enxergar as verdadeiras causas do aumento da violência. Esse mecanismo perverso e intenso faz com que o senso comum não consiga perceber que, com essa alteração, o que vai mudar é apenas o local de confinamento das crianças e adolescentes infratores (que deveriam estar em instituições sócio-educativas) para o subsistema carcerário falido e condenado a explodir cotidianamente por não cumprir o seu papel social.
Faz-se necessário romper com a cultura tradicional de combater apenas as conseqüências, sem atuar nas causas. O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990) abre o caminho para que toda a política de atenção à criança e ao adolescente seja transformada, e as medidas sócio-educativas por ele preconizadas são instrumentos para tal. Elas precisam ser implantadas e implementadas na sua plenitude, pois são meios realmente eficientes para o controle da criminalidade infanto-juvenil.
A implantação, em cada município, de políticas públicas voltadas à criação e à execução de programas sócio-educativos, em conjunto com programas de medidas de proteção, destinados aos adolescentes, crianças e pais ou responsável legal, permitirá maior e melhor enfrentamento da realidade que hoje se apresenta sobre a criminalidade infanto-juvenil.
A solução está também em atender o que preconiza o ECA, implantando os Conselhos Tutelares em todos os municípios e garantindo-lhes o funcionamento; a assistência educativa e preventiva à família; os programas de liberdade assistida, de prestação de serviços à comunidade, de semi-liberdade e criando estabelecimentos educacionais nos quais a privação da liberdade seja uma medida verdadeiramente sócio-educativa e humana.
Cabe ao Estado, ao lado da implementação de políticas públicas sérias, a construção de estabelecimentos adequados para o recolhimento dos menores infratores, com um mínimo de estrutura, onde se possa educar e profissionalizar esses adolescentes. Isso, com certeza, importa um custo bem menor à sociedade, do que o dispêndio que teria com esses menores na rua, sobretudo, no submundo do crime. Com isso, o Estado, sem prescindir de uma parceria com a sociedade civil, estaria colaborando para que a grande maioria desses indivíduos se transformassem em jovens produtivos e cidadãos, incluindo-os socialmente. É uma questão de custo-benefício.
O direito penal, definitivamente, não é o melhor caminho para combater a violência praticada pelos adolescentes. Isso por dois motivos. Primeiro por não ser o instrumento adequado para trabalhar com os jovens, dada sua condição de sujeito em desenvolvimento, e em segundo lugar, porque não se está dando conta do combate da criminalidade em relação ao maior, vai sobrecarregar-se, com certeza, também com o menor. Não há vagas para o maior, o que fazer com o menor? O problema pertinente ao adolescente infrator está muito mais para o social do que para o penal. Está mais ligado a forma de administração do problema.
O ECA ao adotar a teoria da proteção integral (que considera a criança e o adolescente como “pessoa”, pessoa essa, em condição peculiar de desenvolvimento, necessitando, em conseqüência, de proteção diferenciada, especializada e integral), não teve por objetivo manter a impunidade de jovens autores de infrações penais, tanto que criou diversas medidas sócio-educativas que, na realidade, são verdadeiras penas semelhantes àquelas aplicadas aos adultos, mas não vejo a sociedade se mobilizar quando um ladrão é solto ao cumprir 2 anos e 8 meses de prisão e um adolescente, que praticou o mesmo ato, ficar 3 anos em detenção.
As medidas sócio-educativas aplicadas como censura aos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes servem para alertar o infrator sobre a conduta anti-social praticada e reeducá-lo para a vida em comunidade. Se o jovem deixa de ser causador de uma realidade alarmante para ser agente transformador dela, é porque esteve em contato com situações que lhe proporcionaram cidadania, assim, a finalidade da medida estará cumprida. A questão, portanto, não é reduzir a maioridade penal, mas sim discutir o processo de gestão e execução das medidas aplicadas aos menores, que é completamente falho; corrigi-lo, colocá-lo em funcionamento, adequá-lo às necessidades sociais e, além disso, aperfeiçoá-lo, buscando, assim, a recuperação de jovens que se envolvem em crimes, evitando-se, de outro lado, com esse atual processo de execução, semelhante ao adotado para o maior, corrompê-los ainda mais.
O Estatuto também transladou regras das Nações Unidas, elaboradas pelos maiores especialistas do mundo em delinqüência juvenil, tanto na prevenção (Diretrizes de Riad), como na repressão (Regras de Beijing). É preciso que sejam logo implementadas. Basta vontade política. Estando o sistema dos adultos falido, a prudência recomenda que seja tentado algo novo. Submeter os jovens a esse sistema equivaleria diminuir seu processo civilizatório, aumentando, por conseguinte, os índices de reincidência e de criminalidade no País (Volpi, 2000).
O sistema prisional, em sua realidade e efeitos concretos, foi denunciado como fracasso desde 1820, denúncias estas, que, aliás, se fixavam em formulações que se repetem até hoje, conforme descreve Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir (2000).
A prisão como instrumento concretizador da pena-castigo só tem contribuído para a reprodução da criminalidade. Nela se assentam todos os pressupostos contrários ao processo de reeducação. Nela se assentam os pressupostos da desumanização, da deterioração humana, da desqualificação, do estigma, do preconceito; enfim, retira do prisioneiro qualquer sentido de dignidade humana (Foucault, 2000).
O Estado, Poder Público, Família e Sociedade, que têm por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente, não podem, para cobrir suas falhas e faltas, que são gritantes e vergonhosas, exigir que a maioridade penal seja reduzida. Contudo, a proposta de redução busca encobrir justamente estas falhas e, de outro lado, revela a falta de coragem de muitos em enfrentar o problema na sua raiz, cumprindo ou compelindo os faltosos a cumprirem com seus deveres, o que é lamentável, pois preferem atingir os mais fracos, crianças e adolescentes, que muitas vezes não têm, para socorrê-los, sequer o auxílio da família.
Constata-se que no Brasil há crianças sem escola, e sem saúde, por omissão do Estado; quantas outras abandonadas nas ruas ou em instituições, ou sofrendo abusos sexuais e violência por omissão da sociedade e dos pais; quantas exploradas no trabalho, no campo e na cidade, sendo obrigadas a trabalhar em minas, galerias de esgotos, matadouros, curtumes, carvoarias, pedreiras, lavouras, batedeiras de sisal, no corte da cana-de-açúcar, em depósitos de lixo, etc, por omissão dos pais, da sociedade e do Estado. A sociedade, por seu lado, que não desconhece todos estes problemas, que prejudicam sensivelmente os menores, não exige mudanças, tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em crimes, muito provavelmente por conta destas situações, grita, esperneia, sugere, cobra, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição, castigo, internação e abrigo em instituições. Esqueceram que muito antes daquele adolescente violar o direito de outra pessoa, seus direitos Constitucionais foram violados, seu direito a uma família, ao alimento, a escola,  a saúde e a dignidade como pessoa...
Não bastasse isso, o que, por si só, já é extremamente grave, pretendem alguns reduzir a maioridade penal, tentando, com a proposta, diminuir sua culpa e eliminar os problemas da criminalidade. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes aos anos de 2005 e 2006, o Brasil tinha 24.461.666 de adolescentes entre 12 e 18 anos. Desse total, apenas 0,1425% representava a população de adolescentes em conflito com a lei. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (Dados Indicadores sobre a Criminalidade, 2004) é pequena a participação de menores de 18 anos na autoria de crimes graves na capital. Eles são responsáveis por cerca de 1% dos homicídios dolosos (com intenção) em todo o Estado. Eles também estão envolvidos em 1,5% do total de roubos - maior motivo de internação na Febem- e 2,6% dos latrocínios (roubo com a morte da vítima). De acordo com o IBGE, essa faixa etária representa 36% da população. Não se deve argumentar também que o problema da delinqüência juvenil aqui é mais grave do que em outros países, e que por isso a punição deve ser mais rigorosa: tomando 55 países da pesquisa realizada em 2006 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como base, na média os jovens representam 11,6% do total de infratores, enquanto no Brasil a participação dos jovens na criminalidade está em torno de 10%.
Na realidade, autoridades e sociedade civil devem atacar frontalmente o problema do abandono material, intelectual e moral no qual estão submergindo os adolescentes do nosso país.
A cada dia que passa mais crianças são atiradas às ruas, privadas de escola e ficam sem qualquer referencial familiar ou assistencial. Desse modo, não é necessário ser psicólogo, sociólogo, ou mesmo gestor, para afirmar que um adolescente de 16 anos de idade, que desfruta de um ambiente em que o certo e o errado lhe é constantemente apresentado pode entender, em tese, o conteúdo infracional do ato que por ventura venha a cometer. Porém, o que dizer dos milhões de desfavorecidos que crescem e se formam nas ruas? O Estado está preocupado em dar-lhes a educação básica obrigatória, conforme prevê a Constituição Federal? E o que falar da moradia, alimentação, lazer e saúde? São direitos constitucionais negados a essa população, contudo, cobram os deveres ferrenhamente.
Não é possível conviver com um quadro social tão inconstitucional. É inegável que há impunidade, porém, trancafiar adolescentes em FEBEMs, ao invés de se atingir o propósito educativo e ressocializador do ECA, acaba tornando mais intenso o problema e contribuindo para que esses infratores se transformem em perigosíssimos delinqüentes, um pós-graduado no crime, de alta periculosidade, como a realidade, repetidamente, tem comprovado.
Com isto, verifica-se que a questão é muito mais complexa que uma medida de redução da maioridade penal. É um problema estrutural e de gestão, que demanda profundas mudanças sociais, culturais e uma vontade política de realizá-las sem tamanho. Não se combate o efeito sem combater a causa, pois aquele irá retornar.
Conclui-se, por conseguinte, que a redução da imputabilidade penal e o rigor excessivo das punições não recuperam. Só o tratamento, a educação, a prevenção são capazes de diminuir a delinqüência juvenil. Para combater a que já existe, o que se pode afirmar é que a segregação não recupera, ao contrário, degenera. Rigor não gera eficácia, mas revolta e reincidência. E isso é justamente o que não se espera para os nossos jovens.
Pretender mudar a realidade através da lei é uma utopia, para tanto, veja-se o que diz a obra de Jean Cruet, em "A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis", quando observa que todos os dias vê-se a sociedade reformar a lei, porém, nunca se viu a lei reformar a sociedade, e acrescenta que lei que não é cumprida nada significa (Cruet, 2003). E o Brasil tem experiência no tema.
A lei penal, então, não é o remédio para todos os males, como se de fato, a lei, por si só, transformasse a realidade. O fundamental, o essencial e o insubstituível são reformar as consciências e a sociedade. E esse é um projeto muito mais complexo do que modificar a Constituição.

Mariza Helena Machado
Fevereiro/2007

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