Os
meios de comunicação vêm trabalhando exaustivamente a proposta de redução da
idade de responsabilidade penal. Esse tipo de campanha tem conseguido imprimir
na população uma idéia que a impede de enxergar as verdadeiras causas do
aumento da violência. Esse mecanismo perverso e intenso faz com que o senso comum não consiga perceber que, com
essa alteração, o que vai mudar é apenas o local de confinamento das crianças e
adolescentes infratores (que deveriam estar em instituições sócio-educativas) para o subsistema carcerário falido e condenado a explodir cotidianamente por
não cumprir o seu papel social.
Faz-se
necessário romper com a cultura tradicional de combater apenas as
conseqüências, sem atuar nas causas. O
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
8.069 de 13 de julho de 1990) abre
o caminho para que toda a política de atenção à criança e ao adolescente seja
transformada, e as medidas sócio-educativas por ele preconizadas são
instrumentos para tal. Elas precisam ser implantadas e implementadas na sua
plenitude, pois são meios realmente eficientes para o controle da criminalidade
infanto-juvenil.
A
implantação, em cada município, de políticas públicas voltadas à criação e à
execução de programas sócio-educativos, em conjunto com programas de medidas de
proteção, destinados aos adolescentes, crianças e pais ou responsável legal,
permitirá maior e melhor enfrentamento da realidade que hoje se apresenta sobre
a criminalidade infanto-juvenil.
A
solução está também em atender o que preconiza o ECA, implantando os Conselhos
Tutelares em todos os municípios e garantindo-lhes o funcionamento; a
assistência educativa e preventiva à família; os programas de liberdade
assistida, de prestação de serviços à comunidade, de semi-liberdade e criando
estabelecimentos educacionais nos quais a privação da liberdade seja uma medida
verdadeiramente sócio-educativa e humana.
Cabe
ao Estado, ao lado da implementação de políticas públicas sérias, a construção
de estabelecimentos adequados para o recolhimento dos menores infratores, com
um mínimo de estrutura, onde se possa educar e profissionalizar esses adolescentes. Isso, com certeza, importa um custo bem menor à sociedade, do
que o dispêndio que teria com esses menores na rua, sobretudo, no submundo do
crime. Com isso, o Estado, sem prescindir de uma parceria com a sociedade
civil, estaria colaborando para que a grande maioria desses indivíduos se
transformassem em jovens produtivos e cidadãos, incluindo-os socialmente. É uma
questão de custo-benefício.
O
direito penal, definitivamente, não é o melhor caminho para combater a
violência praticada pelos adolescentes. Isso por dois motivos. Primeiro por não ser o instrumento adequado
para trabalhar com os jovens, dada sua condição de sujeito em desenvolvimento,
e em segundo lugar, porque não se está dando conta
do combate da criminalidade em relação ao maior, vai sobrecarregar-se, com
certeza, também com o menor. Não há vagas para o maior, o que fazer com o
menor? O problema pertinente ao adolescente infrator está muito mais para o social do que para o penal. Está mais ligado a forma
de administração do problema.
O ECA ao adotar a teoria da proteção integral
(que considera a criança e o adolescente como “pessoa”, pessoa essa, em
condição peculiar de desenvolvimento, necessitando, em conseqüência, de
proteção diferenciada, especializada e integral), não teve por objetivo manter
a impunidade de jovens autores de infrações penais, tanto que criou diversas
medidas sócio-educativas que, na realidade, são verdadeiras penas semelhantes
àquelas aplicadas aos adultos, mas não vejo a sociedade se mobilizar quando um
ladrão é solto ao cumprir 2 anos e 8 meses de prisão e um adolescente, que
praticou o mesmo ato, ficar 3 anos em detenção.
As
medidas sócio-educativas aplicadas como censura aos atos infracionais
praticados por crianças e adolescentes servem para alertar o infrator sobre a
conduta anti-social praticada e reeducá-lo para a vida em comunidade. Se o
jovem deixa de ser causador de uma realidade alarmante para ser agente
transformador dela, é porque esteve em contato com situações que lhe
proporcionaram cidadania, assim, a finalidade da medida estará cumprida. A
questão, portanto, não é
reduzir a maioridade penal, mas sim discutir o processo de gestão e
execução das medidas aplicadas aos menores, que é completamente falho;
corrigi-lo, colocá-lo em funcionamento, adequá-lo às necessidades sociais e,
além disso, aperfeiçoá-lo, buscando, assim, a recuperação de jovens que se
envolvem em crimes, evitando-se, de outro lado, com esse atual processo de
execução, semelhante ao adotado para o maior, corrompê-los ainda mais.
O
Estatuto também transladou regras das Nações Unidas, elaboradas pelos maiores
especialistas do mundo em delinqüência juvenil, tanto na prevenção (Diretrizes
de Riad), como na repressão (Regras de Beijing). É preciso que sejam logo
implementadas. Basta vontade política. Estando
o sistema dos adultos falido, a prudência recomenda que seja tentado algo
novo. Submeter os jovens a esse sistema equivaleria diminuir seu
processo civilizatório, aumentando, por conseguinte, os índices de reincidência
e de criminalidade no País (Volpi, 2000).
O
sistema prisional, em sua realidade e efeitos concretos, foi denunciado como
fracasso desde 1820, denúncias estas, que, aliás, se fixavam em formulações que
se repetem até hoje, conforme descreve Michel Foucault em sua obra Vigiar e
Punir (2000).
A
prisão como instrumento concretizador da pena-castigo só tem contribuído para a
reprodução da criminalidade. Nela se assentam todos os pressupostos contrários
ao processo de reeducação. Nela se assentam os pressupostos da desumanização,
da deterioração humana, da desqualificação, do estigma, do preconceito; enfim,
retira do prisioneiro qualquer sentido de dignidade humana (Foucault, 2000).
O
Estado, Poder Público, Família e Sociedade, que têm por obrigação garantir os
direitos fundamentais da criança e do adolescente, não podem, para cobrir suas
falhas e faltas, que são gritantes e vergonhosas, exigir que a maioridade penal
seja reduzida. Contudo, a proposta de redução busca encobrir justamente estas
falhas e, de outro lado, revela a falta de coragem de muitos em enfrentar o
problema na sua raiz, cumprindo ou compelindo os faltosos a cumprirem com seus
deveres, o que é lamentável, pois preferem atingir os mais fracos, crianças e
adolescentes, que muitas vezes não têm, para socorrê-los, sequer o auxílio da
família.
Constata-se
que no Brasil há crianças sem escola, e sem saúde, por omissão do Estado; quantas
outras abandonadas nas ruas ou em instituições, ou sofrendo abusos sexuais e
violência por omissão da
sociedade e dos pais;
quantas exploradas no trabalho, no campo e na cidade, sendo obrigadas a
trabalhar em minas, galerias de esgotos, matadouros, curtumes, carvoarias,
pedreiras, lavouras, batedeiras de sisal, no corte da cana-de-açúcar, em
depósitos de lixo, etc, por
omissão dos pais, da sociedade e do Estado. A sociedade, por seu lado, que
não desconhece todos estes problemas, que prejudicam sensivelmente os menores,
não exige mudanças, tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em
crimes, muito provavelmente por conta destas situações, grita, esperneia,
sugere, cobra, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição,
castigo, internação e abrigo em instituições. Esqueceram que muito antes daquele adolescente violar o direito de outra pessoa, seus direitos Constitucionais foram violados, seu direito a uma família, ao alimento, a escola, a saúde e a dignidade como pessoa...
Não
bastasse isso, o que, por si só, já é extremamente grave, pretendem alguns
reduzir a maioridade penal, tentando, com a proposta, diminuir sua culpa e
eliminar os problemas da criminalidade. Conforme dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) referentes aos anos de 2005 e 2006, o Brasil
tinha 24.461.666 de adolescentes entre 12 e 18 anos. Desse total, apenas 0,1425% representava a população de
adolescentes em conflito com a lei. Segundo a Secretaria de Segurança Pública
do Estado de São Paulo (Dados Indicadores sobre a Criminalidade,
2004) é pequena a participação de menores de 18 anos na autoria de crimes
graves na capital. Eles são responsáveis por cerca de 1% dos homicídios dolosos (com intenção)
em todo o Estado. Eles também estão envolvidos em 1,5% do total de roubos - maior motivo de
internação na Febem- e 2,6% dos latrocínios (roubo com a morte da vítima). De
acordo com o IBGE, essa faixa etária representa 36% da população. Não se deve
argumentar também que o problema da delinqüência juvenil aqui é mais grave do
que em outros países, e que por isso a punição deve ser mais rigorosa: tomando
55 países da pesquisa realizada em 2006 pela Organização das Nações Unidas
(ONU) como base, na média os jovens representam 11,6% do total de infratores,
enquanto no Brasil a participação dos jovens na criminalidade está em torno de
10%.
Na
realidade, autoridades e sociedade civil devem atacar frontalmente o problema
do abandono material, intelectual e moral no qual estão submergindo os
adolescentes do nosso país.
A
cada dia que passa mais crianças são atiradas às ruas, privadas de escola e
ficam sem qualquer referencial familiar ou assistencial. Desse modo, não é
necessário ser psicólogo, sociólogo, ou mesmo gestor, para afirmar que um
adolescente de 16 anos de idade, que desfruta de um ambiente em que o certo e o
errado lhe é constantemente apresentado pode entender, em tese, o conteúdo
infracional do ato que por ventura venha a cometer. Porém, o que dizer dos
milhões de desfavorecidos que crescem e se formam nas ruas? O Estado está
preocupado em dar-lhes a educação básica obrigatória, conforme prevê a
Constituição Federal? E o que falar da moradia, alimentação, lazer e saúde? São
direitos constitucionais negados a essa população, contudo, cobram os deveres
ferrenhamente.
Não é
possível conviver com um quadro social tão inconstitucional. É inegável que há
impunidade, porém, trancafiar adolescentes em FEBEMs, ao invés de se atingir o
propósito educativo e ressocializador do ECA, acaba tornando mais intenso o
problema e contribuindo para que esses infratores se transformem em
perigosíssimos delinqüentes, um pós-graduado no crime, de alta periculosidade,
como a realidade, repetidamente, tem comprovado.
Com
isto, verifica-se que a questão é muito mais complexa que uma medida de redução
da maioridade penal. É um problema estrutural e de gestão, que demanda
profundas mudanças sociais, culturais e uma vontade política de realizá-las sem
tamanho. Não se combate o
efeito sem combater a causa, pois aquele irá retornar.
Conclui-se,
por conseguinte, que a redução da imputabilidade penal e o rigor excessivo das
punições não recuperam. Só o tratamento, a educação, a prevenção são capazes de
diminuir a delinqüência juvenil. Para combater a que já existe, o que se pode
afirmar é que a segregação não recupera, ao contrário, degenera. Rigor não gera
eficácia, mas revolta e reincidência. E isso é justamente o que não se espera
para os nossos jovens.
Pretender
mudar a realidade através da lei é uma utopia, para tanto, veja-se o que diz a
obra de Jean Cruet, em "A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis",
quando observa que todos os dias vê-se a sociedade reformar a lei, porém,
nunca se viu a lei reformar a sociedade, e acrescenta que lei que não é
cumprida nada significa (Cruet, 2003). E o Brasil tem experiência no tema.
A lei
penal, então, não é o remédio para todos os males, como se de fato, a lei, por
si só, transformasse a realidade. O fundamental, o essencial e o insubstituível
são reformar as consciências e a sociedade. E esse é um projeto muito mais
complexo do que modificar a Constituição.
Mariza
Helena Machado
Fevereiro/2007
Fevereiro/2007